domingo, 1 de março de 2009

IMUNOLOGIA DOS INIBIDORES DO FATOR VIII
JEAN-MARIE R. SANINT-REMY E MARC G. JACQUEMIN
(CONTINUAÇÃO)

PROPRIEDADES FUNCIONAIS

Cinética da Inativação do FVIII

Usualmente distinguem-se dois tipos de anticorpos inibidores: os de tipo 1 inibem completamente a atividade pró-coagulante do FVIII seguindo a cinética da segunda ordem, enquanto os inibidores de tipo 2 não conseguem inibir completamente o FVIII e seguem uma cinética mais complexa. A razão para tais diferenças não é conhecida. Pode estar relacionada a diferentes mecanismos de interação do FVIII (veja a seguir) e/ou a diferenças na afinidade, embora possível que a interação com o vWF atue num papel. De fato, Gawryl e Hoyer relataram que, para a maioria dos inibidores de tipo 2, a inativação do FVIII foi parcial somente quando o anticorpo estava na presença do vWF. A última observação de que os anticorpos para os domínios A3 e C2 competiam com o vWF pela ligação ao FVIII proporcionam uma explicação para os efeitos do vWF na cinética dos inibidores. É notável que anticorpos competindo com vWF e com uma afinidade suficientemente alta para o FVIII possa inativar o FVIII completamente (inibidor de tipo 1), não obstante seguindo uma cinética complexa pois a ligação ao FVIII requer a dissociação preliminar do complexo FVIII-vWF. Alternativamente, o vWF pode ser requerido para atividade inibitória. Em tais casos, é aceitável que os anticorpos reduzam a taxa de dissociação do FVIIIa do vWF.

Em contraste, raros anticorpos inibem só parcialmente o FVIII ainda que na ausência d vWF. O anticorpo monoclonal humano LE2E9, o qual foi derivado de um paciente com hemofilia média de tipo A com inibidor, reconhece o domínio C1 do FVIII e inibe somente 85% da atividade do FVIII na ausência do vWF. O mecanismo de ação deste anticorpo ainda está sob investigação, mas sua alta afinidade (Kd=0,5 x 10-9 mol/L) indica que, quando ele está presente em excesso sobre o FVIII, todas as moléculas de FVIII devem estar em complexo com o anticorpo. Anticorpos como o LE2E9 provavelmente, por isso, reduzem a atividade de co-fator da molécula de FVIII no complexo X-ase (FVIIIa-FVIIa-TF(F3), complexo X-ase intrínseco; o complexo X-ase extrínseco é o FVIIa com o FT ou F3, fator tecidual, acho que o nome é X-ase porque ativam o fator X). Uma possibilidade adicional é de que os anticorpos de tipo 2 reconheçam epítopos a uma certa distância do sítio funcional do FVIII, induzindo uma mudança conformacional no sítio funcional suficiente para inibir parcialmente a função do FVIII. Entretanto, poderia ser lembrado que a atividade do tipo 1 ou do tipo 2 é atribuída às populações de policlonais e que a cinética da interação do FVIII representa, por isso, uma avaliação proporcional.

Qualquer que seja a razão precisa para essa diferença, a distinção entre inibidores de tipo 1 e de tipo 2 permanece útil. Assim os inibidores de tipo 1 são mais frequentemente observados em pacientes de hemofilia de tipo A severa que respondem a infusões de FVIII pela produção de altos títulos de anticorpos. Em contraste, os inibidores de tipo 2 são observados preferencialmente em pacientes de média ou moderada hemofilia A, em pacientes não tratados previamente (PUPs) construindo uma resposta transitória à infusão do FVIII, e em pacientes produzindo anticorpos em relação a moléculas de FVIII alteradas por procedimentos preparatórios. Esta distinção também é relevante para o fenótipo de sangramento e resposta ao tratamento. Os pacientes com inibidores de tipo 2 usualmente apresentam-se com sangramento na pele e no tecido mole, mais do que nas juntas e sangramento interno dos órgão observado em pacientes com inibidores de tipo1. Em adição, a erradicação do inibidor, tanto espontaneamente ou como resultado da infusão de altas doses de FVIII, é prontamente alcançada em pacientes com inibidores de tipo 2, enquanto os pacientes com inibidor de tipo 1 sejam muito menos respondedores.

MECANISMOS DA INATIVAÇÃO DO FVIII

A molécula do fator 8 é caracterizada por sua plasticidade (capacidade de ser moldada (dobrada em diferentes conformações)) a qual é provocada por seus requerimentos para clivagem proteolítica para ativação e inativação e pela ligação a um número de outras proteínas tanto para proteger-se a si mesma (vWF) quanto para exercer sua atividade de co-fator (fosfolipídios, FIXa, FX). Essas características também a fazem vulnerável à inativação pela ligação de anticorpos específicos.

Usualmente, distinguem-se duas categorias principais de anticorpos inibidores. No primeiro caso, os anticorpos ligam-se a ou dentro de pequena distância de um sítio do FVIII que está envolvido em sua função. É digno de nota que aproximadamente todas as possibilidades têm sido ilustradas pelo estudo dos anticorpos anti-FVIII do camundongo e humanos. Assim, têm sido observados anticorpos que inibem a ligação do FVIII com PL, com vWF, com FIXa e com FX. Também há evidências de que os anticorpos são formados para as regiões ácidas do FVIII, dessa forma interferindo na clivagem pela trombina. Por outro lado, a ligação a sítios do FVIII envolvidos na inativação, essencialmente pelo fator Xa ou proteína C ativada (APC), também vêm sendo descritos, embora a relevância clínica de tais anticorpos seja menos bem compreendida.

Em adição a esse estorvo genético do mecanismo estérico (relativo à estereoquímica: ramo da química que trata das relações tri-dimensionais espaciais de átomos em moléculas), os anticorpos podem ser formados para epítopos que estão acessíveis somente quando a molécula está ou ligada ao vWF ou ativada. Tais anticorpos são muito mais difíceis de distinguir em populações de anticorpos policlonais, tornando difícil determinar ambas a sua prevalência e/ou relevância clínica.

Recentemente, anticorpos com atividade catalítica para o FVIII têm sido descritos, demonstrando uma forte correlação entre uma atividade tal e o título de anticorpos inibidores. Sua presença é detectável em aproximadamente 50% dos pacientes com hemofilia A com inibidores. Preparações altamente purificadas de anticorpos policlonais anti-FVIII exercem sua atividade catalítica quando enzimas contaminantes estão excluídas. Há estudos em curso para determinar se os anticorpos monoclonais também podem clivar o FVIII, para identificar os sítios precisos de clivagem no FVIII, e para demonstrar sua relevância clínica.

Notavelmente, a maioria dos anticorpos anti-FVIII não interfere com a função do FVIII, como avaliado por sistemas de ensaio correntes. Entretanto, ainda não está claro se tais anticorpos “não funcionais” têm ou na um papel patofisiológico. Tem sido sugerido que tais anticorpos poderiam aumentar a taxa de remoção do FVIII da circulação, possivelmente, desse modo, aumentando a captura de complexos FVIII-imunoglobulina por células fagocíticas do sistema reticuloendotelial (o SER – Sistema Reticuloendotelial – é um conjunto de supostos macrófagos, que incluía a maioria dos macrófagos verdadeiros (agora classificados como sistema fagocítico mononuclear) e as células que revestem os sinusóides do baço, dos linfonodos e da medula óssea, bem com as células reticulares fibroblásticas dos tecidos hematopoiéticos, todas estas últimas células são apenas fracamente fagocíticas e não constituem macrófagos verdadeiros. O termo persiste na literatura e frequentemente é usado como sinônimo de sistema fagocítico mononuclear. Stedman – Obs.: Células reticulares são as células com processos que fazem contato com processos de outras células semelhantes para formar uma rede celular que envolve uma rede de fibras reticulares, constituindo o estroma (arcabouço conjuntivo de um órgão) de todos os órgãos linfóides, exceto o Timo – Stedman e Aurélio). Agora que os mecanismos pelos quais o FVIII é removido da circulação têm começado a ser decifrados, é mais fácil avaliar se alguns anticorpos podem reduzir a remoção por ligação à proteína relacionada aos receptores de lipoproteína de baixa densidade (LRP) ou ligação do FVIII a sítios de Sulfato de Heparan (HSPG) ou não. Até o presente, a dificuldade tem sido que, em humanos, as interações descritas acima têm sido identificadas com o uso de anticorpos preparados de pacientes, chamados anticorpos policlonais exibindo diferentes especificidades e afinidades. Os efeitos descritos são, dessa forma, o resultado de muitas interações. Um entendimento a mais através da interação entre o FVIII e os anticorpos humanos pode ser proporcionado pela produção de anticorpos monoclonais humanos, bem como através de estudos concluídos no modelo de camundongo FVIII-/-.

CÉLULAS T ESPECÍFICAS PARA O FVIII

Várias observações clínicas indicam que células T específicas para o FVIII sustentam o desenvolvimento da resposta humoral ao FVIII. Em alguns pacientes com uma resposta humoral estabelecida para o FVIII, a infecção pelo HIV levou ao declínio no inibidor do FVIII bem como à contagem de células T. Uma grande parte da produção de anticorpos anti-FVIII pertence à sub-classe IgG4. Isto localiza com precisão o papel das células T no desenvolvimento da resposta humoral ao FVIII já que o interruptor de isotipo é dependente de célula T. Finalmente, hiper-mutações têm sido consistentemente detectadas em genes codificando a porção variável dos anticorpos anti-FVIII clonados tanto por imortalização de linfócitos do sangue periférico de pacientes com inibidor quanto por tecnologia de exposição de fagos. Isso indica que as células B secretando anticorpos anti-FVIII submetem-se à processos de maturação da afinidade que requerem a afinidade de células T.

Células T específicas para o Fator VIII têm sido identificadas no sangue periférico de pacientes com hemofilia A com inibidor usando ensaios de proliferação de células T com FVIII nativo. O epítopo reconhecido por tais células tem sido mapeado usando-se peptídeos sintéticos recobrindo a molécula de FVIII inteira. Em pacientes com severa hemofilia A, células T específicas para o FVIII reconhecendo uma ampla série de peptídeos espalhados sobre a molécula de FVIII inteira têm sido detectados. As células T proliferando em resposta a tais peptídeos também têm sido identificadas em pacientes com hemofilia a sem um inibidor e em indivíduos saudáveis. Somente diferenças qualitativas e quantitativas menores têm sido identificadas entre as células T específicas para o FVIII isoladas de indivíduos saudáveis e células T isoladas de pacientes com hemofilia A com ou sem inibidor.

Entretanto, diferenças nítidas entre indivíduos normais e pacientes de hemofilia A com um inibidor têm sido observados quando as células T específicas para o FVIII foram examinadas no nível clonal. As linhas de células T específicas para o FVIII foram expandidas e clonadas usando-se células dendríticas e células linfoblastóides específicas para FVIII carregadas com FVIII nativo. Sob essas condições experimentais, o isolamento de sucesso de linhas de células T específicas para o FVIII foi relatado quando o sangue de um paciente de hemofilia A com inibidor foi usado mas não quando foi usado o sangue de indivíduos normais (ref. Jacquemin MG, Van Tomme V, Buhot C, Lavend’homme R, Burney W, Demotte N et all. A Single mutation Arg22150His regulates the T cell specificity for the factor VIII C1 domain: a molecular mechanism responsible for the higher incidence of inhibitor in mild/moderate hemophilia A patients with mutations in the C1 domain. Blood, 2003). A especificidade do epítpo de algumas poucas linhas de células T caracterizada até agora é também muito mais restrita do que aquela observada quando os peptídeos são usados para estimular as células TCD4+ isoladas do sangue de pacientes de hemofilia a ou de indivíduos normais.

Tal aparente discrepância das observações reitera o que foi observado nos estudos com animais e observações clínicas em outros campos tais como as doenças auto-imunes (veja sobre, Homeostasis of the anti-FVIII immune response). Duas populações de células T específicas para o FVII coexistem na periferia. Uma população é detectável em indivíduos normais e em pacientes de hemofilia A independentemente do status do inibidor e é demonstrável somente quando o repertório de célula T específica para o FVIII inteiro é rastreado através do uso de peptídeos. Uma segunda população da linha de células T patogênica de boa fé está presente somente em pacientes com anticorpos inibidores.

PERSPECTIVAS

Muitas questões permanecem concernentes à resposta imune ao FVIII. Entretanto, é claramente de valor a perseguição desse tipo de investigações. Acima da primeira baliza, a qual é promover novos métodos para prevenir e/ou suprimir a produção de inibidores nos pacientes, mais informações amplamente aplicáveis serão indubitavelmente reunidas.

A resposta imune anti-FVIII representa a única situação conhecida na qual respostas auto- e allo-imunes são observadas correntemente e na qual os pacientes em risco podem ser seguidos por longo tempo. Isso oferece a possibilidade do estudo da via pela qual a tolerância é estabelecida nos órgãos centrais e periféricos. Com a ajuda de modelos animais convenientes e experimentos levados a cabo no nível clonal (incluindo animais transgênicos), existe pequena dúvida de que os mecanismos que levam às respostas imunes anti-FVIII permaneças progressivamente irrevelados.

Fonte : Textbook of Hemophilia
Blackwell Publishing

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