domingo, 1 de março de 2009

IMUNOLOGIA DOS INIBIDORES DO FATOR VIII
JEAN-MARIE R. SANINT-REMY E MARC G. JACQUEMIN

A resposta immune ao fator VIII (FVIII) apresenta várias características que a tornam única. Os anticorpos para o FVIII são produzidos por indivíduos saudáveis, por pacientes sofrendo de hemofilia A, e por pacientes afetados com algumas doenças auto-imunes. O FVIII é um anto-antígeno na primeira dessas três situações. No segundo caso, o FVIII é administrado intravenosamente em ingrediente determinante repetido. As diversas características tornam essencial considerar as respostas imunes ao FVIII a partir de um ponto de vista geral, e não apenas como uma resposta peculiar ocorrendo em somente uma proporção de pacientes com hemofilia A.

A avaliação detalhada dos inibidores do FVIII tem experimentado dificuldades na grande diversidade da resposta humoral. Anticorpos que não interferem com a atividade do FVIII tornam difícil estabelecer uma ligação entre a especificidade do epítopo e o mecanismo de inativação do FVIII. Além disso, anticorpos anti-idiotipos (idiotipo é um conjunto de idiótopos, na região variável, que confere à molécula de imunogloulina uma “individualidade” antigênica e que constitui frequentemente um atributo exclusivo de determinado anticorpo em um animal específico. Trata-se do produto de um número limitado de clones de linfócitos B: também encontrado no receptor de células T. Idiótopo é um determinante antigênico único, de um idiótipo) que neutralizam inibidores de FVIII têm sido descritos. Para burlar estas dificuldades, anticorpos monoclonais humanos direcionados contra o FVII e representativos doas anticorpos patogênicos dos pacientes têm sido produzidos por ambas as tecnologias de linfócitos B imortalizados e disponibilização (exposição) de fagos. A imortalização dos linfócitos B pode proporcionar anticorpos que carregam ambas as cadeias pesada e leve representando o repertório dos pacientes. A tecnologia de manifestação de fagos faz uso de ampla associação entre as cadeias pesada e leve.

A proposta deste capítulo é revisar nosso conhecimento corrente da homeostase da resposta anti-FVIII, para sumarizar a informação recentemente coletada de modelos animais, e para atualizar dados obtidos de observações clínicas relevantes.

A HOMEOSTASE DA RESPOSTA IMUNE ANTI-FVIII

A produção de anticorpos para o FVIII, análogos à resposta imune para qualquer glicoproteína solúvel, depende da interação específica entre os linfócitos B e T. Existem, entretanto, duas exceções. Como o FVIII é administrado intra-venosamente, ele pode ativar as células B diretamente, resultando na produção de anticorpos sem a contribuição das células T.
A segunda circunstância na qual as células T não devem ser requeridas ocorre quando as células B de memória são reativadas (veja adiante).

O repertório das células T é estabelecido primariamente no timo (referência para revisão Walker LS, Abbas A.K. O inimigo interior: o impedimento à entrada das células T auto-reativas na periferia – “ The enemy within: keeping self-reative T cells at bay i the perifery”. Nature Ver Immunol, 2002; 2:11-19) O papel do último (timo) é triplo:

1) Eliminar células T que não reconhecem determinantes do MHC de classe I ou de classe II, um processo através do qual as células T CD4/CD*(-) amadurecem em células CD8= ou CD4+ respectivamente;
2) Eliminar células T que reconhecem com alta afinidade o complexo de epítopos próprios e determinantes do MHC; e
3) Selecionar uma população de células T regulatórias que expressam CD25.

Por inúmeras razões, não é realista esperar que tal seleção eliminaria todas as células T com a capacidade para reagir com o FVIII. Primeiro, o repertório das células T é de tal magnitude que contém diversidade suficiente para reagir a qualquer epítopo de célula T possível. Segundo, o processamento de um antígeno resulta na apresentação de somente alguns epítopos às células T, selecionados no último endossomo para melhor ajustar-se dentro dos determinantes do MHC de classe II. Terceiro, um processo de seleção no timo remove somente as células T de alta afinidade, e aqui, como está bem demonstrado, as células T com afinidade intermediária são mantidas e levadas à periferia. Quaro, os receptores de células T (TCRs), uma vez pensados como disciplinadamente específicas para sequências, reagem de fato com múltiplas conformações de peptídios apresentados pelos determinantes do MHC de classe II; uma célula T pode por isso reconhecer um grande número de sequências diferentes com maior ou menor afinidade, dependendo do peptídio em si, do determinante do MHC, e da avideza do receptor de célula T (TCR). A consequência prática disto é que o uso de peptídios curtos para rastrear a reatividade das células T identificará indubitavelmente as células T específicas para o FVIII em indivíduos saudáveis. Isso tem sido confirmado experimentalmente. Por outro lado, o repertório da célula T é relativamente fixo todo o tempo.

Por contraste, o repertório das células B é continuamente reabastecido durante a vida. A reorganização casual do receptor de célula B (BCR) na medula óssea gera células com potencial de reação com o FVIII. A maioria das células B auto-reativas são eliminadas antes de entrarem na periferia. Entretanto, as células B usam um número de mecanismos pelos quais elas podem diversificar-se mais além na periferia. Anticorpos codificados na linha germinativa são poli-específicos, e tem sido estimado que uma única molécula de anticorpo poderia reconhecer mais de 106 epítopos diferentes. A interação primária entre as células B e o antígeno depende de interações físico-químicas nas quais a primeira influência é minimizar a necessidade de energia, e o não reconhecimento de sequências específicas. Uma possível exceção para isso será descrita adiante para os anticorpos anti-FVIII em direção ao domínio C2. Anticorpos de origens genéticas diferentes podem, dessa forma, ligar-se ao mesmo epítopo e adquirir afinidade por adoção de um número de diferentes estratégias químicas: atrações por via das forças de van der Waals, criação de ligações com hidrogênio, e estabelecimento de pontes dissulfídicas são exemplos. Isso é o possível resultado de hiper-interações somáticas, o que é uma propriedade das células B. Isto envolve a introdução aleatória de interações nas regiões hiper-variáveis do anticorpo, seguida pela seleção dirigida por afinidade.

Todas as condições são, dessa forma, reunidas para que uma resposta imune ao FVIII surja: estão presentes as células T e B específicas. Entretanto, os mecanismos pelos quais a resposta imune está mantida sob controle, isto é , sem a emergência de anticorpos inibidores, são muitos: células específicas mantidas em um estado de anergia ou não responsividade, a presença de anticorpos anti-idiotípicos (anticorpos anti-idiotípico deve ser o anticorpo que possui vários idiótipos na região variável da imunoglobulina Ig sendo assim um anticorpo para vários epítopos.), e células T regulatórias são porém alguns desses mecanismos. Entretanto alterações súbitas neste equilíbrio podem levar rapidamente à produção de anticorpos.

LIÇÕES DOS MODELOS ANIMAIS

Progressos significativos em nosso entendimento de como os anticorpos murinos anti-FVIII são elicitados têm sido produzidos desde que o modelo da hemofilia A do camundongo tornou-se acessível. Linhagens com a ruptura dos éxons 16 ou 17 alvejada imitam a situação dos pacientes com severa hemofilia a e têm sido usadas para estudar as condições sob as quais os anticorpos são gerados.

A injeção de quantidades fisiológicas de rFVIII (recombinante) humano pela rota intravenosa elícita uma forte resposta de anticorpos, com a ativação da célula T observada após somente 3 dias. As características da resposta de anticorpos combinam aquelas observadas em pacientes com inibidores, marcada persistência de longo prazo de títulos significativos de anticorpos, dependência de sinais co-estimulatórios, e resistência à supressão de respostas estabelecidas. Células T CD4+ específicas pertencem a ambos os sub-conjuntos Th1 e Th2, com produção de anticorpos IgG1 e IgG2. O interferon gama (IFN-y) e a interleucina 10 (IL-10) dominam o padrão de citocinas. Um discernimento adicional colhido da imunização do FVIII em camundongos com hemofilia A é que o fator von Willebrand (vWF) pode afetar de alguma forma a imunogenicidade do FVIII, tanto por reduzir a resposta de anticorpos em geral relativa ao FVIII quanto por modificar o perfil de especificidade de anticorpo. Esses resultados devem ser interpretados com cautela, entretanto, já que o FVIII humano foi usado para estes experimentos. Existe evidência de que a imunogenicidade do FVIIII do camundongo em tal modelo poderia ser diferente, tanto qualitativamente quanto quantitativamente.

OBSERVAÇÕES CLÍNICAS

1-CARACTERIZAÇÃO DE ANTICORPOS ANTI-FVIII
1.2) CARACTERÍSTICAS FÍSICO-QUÍMICAS
1.2.3) Especificidade do Anticorpo:

O mapeamento de epítopos de células B no FVIII tem sido objeto de muitos estudos. É claro que qualquer parte do FVIIII que está exposta na superfície na forma nativa ou ativada da molécula, ou quando o FVIII está associado ao vWF ou a fosfolipídios (PL), constituem um sítio de ligação potencial para anticorpos. As características do repertório das células B descritas acima, sugerem fortemente que este é o caso, e isto tem sido confirmado por evidências experimentais. A presença de anticorpos para o FVIII é frequentemente confundida com a presença de anticorpos inibidores, os quais constituem somente um sub-grupo de anticorpos com propriedades funcionais relacionadas essencialmente para o epítopo que eles reconhecem. Se os anticorpos não-inibitórios podem ou não alterar outros parâmetros da fisiologia do FVIII não está inteiramente esclarecido (veja adiante, mecanismos de interação do FVIII). Nossa limitada experiência com um anticorpo monoclonal humano neutralizando parcialmente a atividade do FVIII não apresentou efeito na remoção (observações não publicadas).

É de tradição descrever os epítopos das células B no FVIII enquanto organizados em conjuntos. Essa caracterização como um “conjunto” deve ser interpretada cautelosamente devido à imprecisão das análises feitas de anticorpos policlonais, as quais, nos melhores casos, foram purificadas por afinidade. Entretanto, este termo faz sentido uma vez que anticorpos de diversas origens genéticas tendem a reconhecer rigorosamente epítopos relacionados por adoção de estratégias convergentes. Além disso, anticorpos inibidores frequentemente reconhecem partes de epítopos funcionais no FVIII, e não a área inteira envolvida na interação funcional do FVIII. O melhor exemplo disso é proporcionado por anticorpos inibindo a ligação do FVII ao vWF, o último tem numerosos pontos de interação com o FVIII, localizados sobre toda a cadeia leve do FVIII.

Até agora, conjuntos de epítopos de células B têm sido identificados primariamente nos domínios C2 e A2, localizados em entre os resíduos 2181-2243 e 2248-2312 para o domínio C2, e 484-508 para o domínio AZ, respectivamente. Entretanto, no caso dos epítopos C2, é sabido que a conformação tri-dimensional é importante para o reconhecimento completo pelo anticorpo, como mostrado pela importância das pontes dissulfídicas dentro desse domínio. Conjuntos adicionais de epítopos de células B têm sido descritos nos domínios A3 (resíduos 1778-1823) e C1 (acerca do resíduo 2150), a freqüência dos quais não está clara. Um achado intrigante é que anticorpos reconhecendo as regiões ácidas a1 e a3 (e possivelmente a2) são aceitáveis por serem mais freqüentes do que previamente pensado, embora o mecanismo pelo qual eles inibam a função do FVIII seja menos bem compreendido. A imortalização dos linfócitos B bem como a exposição de fagos continuará a proporcionar informações sobre os anticorpos direcionados para os domínios A2, A3, C1 e C2, e ajudará a determinar o repertório de genes de imunoglobulina codificando para anticorpos anti-FVIII.

Interessantemente, a longa questão em relação ao mapeamento de epítopos de células B do FVIII têm resultado em significativos avanços em nosso entendimento da função do FVIII, e, indiretamente, de sua estrutura tri-dimensional. Através da aplicação de técnicas de cristalização, a conformação inteira do FVIII será elucidada esperançosamente. Por outro lado, a disponibilidade de anticorpos monoclonais derivados do repertório de pacientes torna exeqüível analisar a dinâmica da interação do anticorpo com o FVIII, bem como os mecanismos pelos quais anticorpos inibidores são formados e regulados. O primeiro de tais anticorpos monoclonais humanos caracterizado, BO2C11, reconhece o domínio C2 do FVIII e inibe a ligação do FVIII com fosfolipídios e com vWF. A determinante antigênica reconhecida por BO2C11 for determinada por estudo cristalográfico de fragmentos Fab de BO2C11 ligados ao domínio C2 recombinante. O BO2C11 faz contato direto com a maioria dos resíduos hidrofóbicos e básicos previstos por mediarem a ligação do FVIII aos fosfolipídios, o que é consistente com sua atividade inibitória.

ISOTIPO DE ANTICORPO E ORIGEM GENÉTICA

A resposta de anticorpos anti-FVIII recruta todas as sub-classes de IgG, mas o isotipo IgG4 é um pouco sobre-representado (a maior), considerando que a IgG4 conta para somente 3% da concentração total de IgG no plasma. Não está clara a explicação para este achado. O interruptor de isotipo de IgM para IgG4 depende da presença de IL-4 e/ou IL-13, as principais citocinas envolvidas na produção de anticorpos IgE. Já anticorpos IgE contra o FVIII não são observados, em contraste com o que é ocasionalmente observado no caso dos inibidores do Fator IX. A IgG4 está associada à exposição de longo prazo aos antígenos, uma situação que caracteriza pacientes de hemofilia A com inibidores de longa permanência. Interessantemente, a IgG4 é considerada por ser funcionalmente monovalente devido à limitada flexibilidade de sua região de dobradiça. Entretanto, ela não parece menos ávida, como pode ser observado com anticorpos monoclonais humanos.

Dados recentes sobre a origem genética de anticorpos anti-FVIII mostram que anticorpos relativamente ao domínio C2 pertencem a duas sub-famílias de anticorpos distintas: num primeiro momento, anticorpos da sub-família DP5 são proeminentes entre os anticorpos que reconhecem sítios de ligação de PL (fosfolipídios) do FVIII. Dados convergentes têm sido obtidos por duas abordagens independentes, isto é, o estudo do repertório de VH humano por exposição de fago e a derivação de anticorpos monoclonais das células B de memória de pacientes com inibidores. A razão por quê a família DP5 é recrutada pode estar relacionada a características não usuais (incomuns) dos CDR3 de tais anticorpos, os quais carregam um número de resíduos negativamente carregados capazes de interagir com cargas positivas constitutivas do sítio de ligação a fosfolipídios do FVIII. Uma segunda família de anticorpos para C2 tem sido identificada (DP84), embora permaneça não claro o motivo pelo qual os anticorpos DP84 são representados a maior. Dados preliminares de anticorpos inibitórios para o domínio A2 mostram evidências menos convincentes da origem genética restrita. Mais dados sobre o repertório natural das células B de memória de análises de exposição de fagos são necessários para esclarecer este fenômeno.

(CONTINUA...)
Fonte : Textbook of Hemophilia - Blackwell Publishing

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